sábado, 26 de março de 2011

João Ninguém (Alguém) Martins - Parte 4





Após as primeiras exposições, mestre João Martins, como um eterno aventureiro, descobriu que tinha que ganhar o mundo - bem ao estilo Fernando Pessoa de ser. Mas como era difícil deixar sua eterna Coimbra e, principalmente, seus amigos.

Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa:

"Navegar é preciso; viver não é preciso".

Quero para mim o espírito [d]esta frase, transformada a forma para a casar como eu sou:

Viver não é necessário; o que é necessário é criar.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso.

Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo.

Quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha.

Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade.

É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.

(Navegar é preciso - Fernandoi Pessoa)


Mestre João amava Coimbra, que, aliás, representou em muitas de suas obras. Gostava de subir as ladeiras calçadas de pedras até a famosa universidade, de onde tinha uma belíssima vista da cidade, com o Rio Mondego ao fundo. Ah! E a biblioteca! Quantas horas ele passava ali dentro viajando pelos livros. Essa, por enquanto, era a única maneira, devido à situação financeira da família, de entrar em contato com a história da arte universal. E ali ele passava horas.

Também adorava ficar à beira do Rio Mondego, junto com seu irmão, paquerando as "raparigas" (como eram bonitos os dois....). E, de vez em quando, para impressioná-las, arriscava-se numa moto - bem ao estilo James Jean. Mas, claro, a arte nunca saia, sequer um segundo, de sua alma. Sempre estava com os apetrechos necessários para quando quisesse, simplesmente, pintar. E como gostava de fazer os retratos de suas "amadas"... Mas o grande amor da vida dele - apesar de ainda não saber - estava muito longe de Portugal.


Mestre João Martins a bordo de uma moto - e que moto. Parece até um galã de cinema!

Tio Jaime, irmão de meu pai (os dois sempre foram parecidos)


Mas ele sabia que precisava ganhar o mundo. Era chegada a hora de se despedir. da família que tanto amava (do pai, da mãe e do irmão). Foi quando decidiu cursar Arquitetura, Paisagismo e Artes Plásticas na Escola Superior de Belas Artes do Porto. E assim foi.

A mãe, Idalina, e o pai, Francisco, de Mestre João Martins

Mas não sem antes realizar exposições individuais na Galeria Cassino Estoril, em Estoril (1949) e Galeria José Malhoa, em Lisboa (1950). E, também, coletivas no Salão de Outono (Sociedade Nacional de Belas Artes), em Lisboa, e no Salão de Pintura Feira de Viseu, em Viseu. Ambas em 1950.

A certeza de que deveria colocar o pé na estrada veio com o primeiro lugar em Aquarela, pelo Salão Feira de Viseu (1950) e o segundo pelo Salão de Pintura de Lisboa (1950). Além disso, ganhou uma medalha de segundo lugar em aquarela pelo Salão de Outono de Lisboa. Mas mestre João Martins sabia que ainda tinha um longo caminho a percorrer...



Mestre João Martins participa do II Salão Provincial, em Viseu

Mestre João Martins participa da Feira Franca de Viseu com duas telas pintadas a óleo


E assim foi, com a cara e a coragem, e pouco dinheiro no bolso, para a cidade do Porto... Afinal, o futuro lhe esperava... E os vinhos também...






Era uma vez um português

Paulo Bonates
(artigo publicado em A GAZETA, na parte de Opinião, dia 26 de março de 2011)

O artista português João Martins, feito e perfeito em Coimbra, que viveu muitos anos entre os capixabas com a família, não chegou a ver nem saber da destruição de parte da sua obra que compunha as paredes do principal restaurante do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, Brasil. Morreu vítima de uma barbeirada médico-hospitalar e de um aneurisma.
João expressava-se unicamente pelo talento.

Quando tentava falar era um desatino. Gaguejava que só. Não foi feito para falar com palavras. Por circunstâncias pessoais convivi com ele, que se apelidava, paradoxalmente, de João Ninguém. Veja como os significados são sutis, desse João Tudo.
Pinturas, gravuras, esculturas e cultura geral. E à modalidade de paciência dos agraciados pela genialidade, irritava-se à toa. Mas gostava de piada de português: ouvia e contava. Muitas vezes, depois de passar meses trabalhando em uma pintura, por exemplo, jogava fora. Já confessei, anteriormente, que a maioria da minha pinacoteca foi conquistada via lata de lixo do João.

Quadro de mestre João Martins que faz parte da pinacoteca de Paulo Bonates

Não teve nada, mas foi muito. É esta , meus caros, a sublime diferença entre ser e ter que fazer. A arte lhe brotava pelas mãos já trêmulas e cheias de capricho, os olhos faiscando atentos às filigranas de sua forma de imprimir seu eu. Agora restam as suas representações, dependuradas mundo afora. Comigo, ficam os gestos, as críticas elaboradas com saber sobre a ordem, o mundo, a ética.

Paulo Bonates com mestre João no Natal de 2006 - mestre João está lendo o livro sobre Fernando Pessoa que ganhou de PB

Os cinco filhos, residentes em Vitória, São Paulo, Paris e Lisboa, que foram criados com arte, por arte do pai, estão muito tristes, pois haviam entrado em contato com a empresa responsável pela reforma do Hotel Glória dispondo-se a retirar os painéis de azulejos, pintados à mão em 1960, antes da grosseria de feri-los mortalmente com britadeiras mentais e propriamente ditas.


O irresponsável pelo descaso ficou muito mais famoso pelas estrepolias público-conjugais com atrizes do que por fazer qualquer coisa para aumentar a fortuna que o pai lhe deu, transformando-se, hoje, na pessoa mais rica do Brasil, onde a diferença entre pobres e ricos é uma das maiores do mundo. Triste, muito triste.


A arte, como sabemos, é a derradeira das metáforas, não pode ser explicada, apenas sentida. Assim como o amor não precisa de ninguém ou nada para existir e autodeterminar-se. Tal violenta ignorância está protegida pela representação social da ignorância do país, monitorada unicamente pelo dinheiro. Não há ideologia, não há nada parecido. Agora, como dantes, a censura existe e é mais eficiente e sutil. O capital assumiu a forma humana como um clone previsível em sua determinação: eliminar a inteligentzia. Esta seria mortal para os rudes e poderosos caboclos. Então é possível que o movimento espontâneo que paira internacionalmente não dê em nada, como se diz.

Pincéis, tintas, telas, cinzéis, azulejos, painéis e semelhantes, comovam-se.

Neste tempo é inútil esperar algo de humano, dos humanos.


O autor
é psiquiatra e professor de Psicologia Médica

quinta-feira, 10 de março de 2011

João Ninguém (Alguém) Martins - Parte 3


Depois da exposição de 1948, na Sala de Exposições "O Primeiro de Janeiro", em Coimbra, Portugal, e em seguida no Cassino da Figueira da Foz, em Figueira da Foz, onde vendeu praticamente todas as obras, o mestre João Martins começou a se preparar para a próxima. O sucesso da primeira foi tão grande que foi convidado, novamente, a expor na sua cidade natal. E ele não tinha 20 anos ainda.

Jornal "O Despertar" (23/02/1949), Ano XXXII, Nº 3.225. O nome do meu pai saiu errado (José ao invés de João Martins)


Mas obras de arte não surgem da noite para o dia - afinal, artistas são movidos pela inspiração. Para eles, a criatividade é como o ar que respiram. E ela surge num insight - num momento único, que, aliás, pode ou não ficar para a eternidade.

Isso, obviamente, depende da sensibidade de quem tiver o prazer de observá-la no futuro. Para pessoas sem sensibilidade, como o bilionário Eike Batista, por exemplo, pode significar apenas lixo (entulho) - principalmente se não puder ser transformada em cifrões.

Não é a toa que o empresário continua sendo, segundo a Forbes, o oitavo homem mais rico do mundo - com uma fortuma de US$ 30 bi. Mas eu pergunto: "Às custas de quê?". Dizem que para chegar a esse patamar, ele passou como uma retroescavadeira em tudo o que viu pela frente, inclusive o meio ambiente.

Fico imaginando o valor irrisório, em relação à sua fortuna, que seria necessário gastar para remanejar os painéis de azulejos pintados à mão, em 1960, por mestre João Martins, no Hotel Glória, no Rio de Janeiro, entre outras preciosidades que provavelmente foram destruídas no local.

Isso sem falar que grande parte dos recursos da reforma do edifício, R$ 147 milhões, saiu do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDS), dentro da linha ProCopa Turismo, destinada à reforma e construção de hotéis para a Copa do Mundo de 2014.

Para amenizar o fato, a assessoria do Hotel Glória informou que as obras de arte destruídas foram fotografadas - grande consolo! E que toda a reforma contou com historiadores, restauradores, engenheiros e arquitetos (fico imaginando onde aprenderam a profissão).

Diante desse caos, não entendo a classe artística brasileira, tirando as exceções, é claro, que simplesmente se calou diante da destruição do Teatro Glória, construído em 1970, dentro do local - por onde passaram grandes nomes. Prefiro não pensar que esse silêncio seja ocasionado por interesses próprios de alguns. Ou melhor dizendo: o patrocínio do bilionário a quem, claro, interessa (ou vice-versa).

Mas voltando ao mestre João Martins...

A segunda exposição de sua vida foi realizada em 1949 - portanto, um ano depois da primeira. E mais uma vez a mostra contou com a boa vontade de alguns doutores da Universidade de Coimbra, com conceitos bem diferentes de Eike Batista.

...nada tenho que especificamente me qualifique para o papel que aqui estou a desempenhar: nada sei de pintura, sinto-a, apenas, e isso continua a bastar-me para meu governo... (Doutor Paulo Quintela durante discurso de abertura da primeira exposição).

Mestre João Martins preparando-se para a segunda exposição - momentos de inspiração

Por isso, para o mestre João Martins o ano de 1948-1949 foi de muita inspiração. A segunda mostra na Sala de Exposições "O Primeiro de Janeiro", em Coimbra, foi um sucesso. Foram expostos nove óleos, trinta aquarelas e seis desenhos (e praticamente todos foram vendidos). Obras que ainda estão enfeitando paredes de algumas casas lusitanas - infelizmente não podemos falar o mesmo dos painéis destruídos no Hotel Glória, que ficaram ali, preservados, por 51 anos, até a chegada fatídica do empresário.


Folheto da segunda exposição de mestre João Martins na Sala de Exposições "O Primeiro de Janeiro", em Coimbra


Por isso, para que fatos como esse não ocorram mais no Brasil, insisto na campanha DIGA NÃO À DESTRUIÇÃO DE OBRAS DE ARTE, que agora já conta com abaixo-assinado (onde não é obrigatório colocar os dados, apenas o nome e o e-mail). Meu objetivo é conseguir o máximo de assinaturas possíveis e, depois, levar o documento até Brasília e emplacar uma lei mais específica contra a depredação de nosso patrimônio histórico-cultural.

Lembre-se: se você é um artista, um dia a sua obra de arte também pode encontrar um Eike Batista pelo caminho e ir parar no lixo. Então, se você acredita na eternidade da arte, participe e DIGA NÃO À DESTRUIÇÃO DE OBRAS DE ARTE repassando para todos a hashtag #AzulejosHotelGlória, no twitter, ou os posts do Facebook.





Arte final de Carmem Tristão

Contamos com a sua participação.