É interessante como algumas pessoas nascem com um dom. É uma dádiva. Se esse dom vai transformar-se em profissão, só os anos podem dizer. Com mestre João Martins, foi assim. Ele simplesmente nasceu artista (lá em Coimbra). E sempre dizia: "Desde que me entendo como gente, lembro-me de estar com um lápis na mão, rabiscando".
Sei que a vida de mestre João Martins, não foi fácil. Não sei muito sobre sua infância. Ele era uma pessoa de poucas palavras - e de muita arte. Toda sua expressão vinha da arte. Quando olho para as telas penduradas nas paredes do meu apartamento (e são muitas, de estilos variados) tento adivinhar como estaria ele naquele momento.
Olho para o cantor medieval e, não sei porque, enxergo um rosto triste. Mas a roupa é tão colorida, tão alegre? Como pode ser? Será que essa desolação que enxergo no personagem é puro devaneio de minha mente? Imagino um cantor medieval, andando de cidade em cidade, atrás de público, buscando uns trocados entre as pessoas da vida palaciana. Ou não, o que importava era apenas tocar. Vai saber.
Já quando olho os "São Franciscos" (mestre João Martins pintou muitos, em vários estilos. Ele amava os animais), vejo um triste, outro alegre... Às vezes, fica até difícil saber que é o santo, pois está estilizado. Um deles, inclusive, nem chegou a ser terminado, faltaram-lhe os pássaros, como bem conta a crônica do jornalista e médico Paulo Bonates (a tela era para ele).
São Francisco de Assis (pintado casualmente à caneta Bic num caderno qualquer)
Acho que pintar o protetor dos animais foi uma forma que meu pai encontrou de expressar sua fé. Vai entender os meandros da arte - e dos artistas. E nem é necessário, a nós basta ter sensibilidade para apreciar sua beleza.
Já no caso dos seis painéis de azulejos do Hotel Glória, destruídos na gestão do empresário Eike Batista, fico a pensar: "O prédio foi construído em 1920. Em 1960, portanto, 40 anos depois, meu pai fez o conjunto da obra. Até 2011, durante 51 anos, ele ficou lá totalmente preservado".
Descobri, inclusive, entre os seus documentos, que, além dos seis painéis, ainda existiam 18 obras em azulejaria (de sua autoria), no mesmo estilo, em azul e branco, espalhadas pelo Salão Rugendas. É uma pena, tudo virou entulho.
Agora, fico imaginando meu pai tentando reproduzir, perfeitamente, as pinturas de Rugendas (um pedido do senhor Eduardo Tapajós, o então proprietário do Hotel Glória). Como um quebra-cabeça (afinal cada azulejo representava uma parte da paisagem), mestre João Martins foi pintando à mão o conjunto. E nada podia sair errado. Ainda consigo vê-lo, no Atelier Artístico Martins, dizendo: "Cuidado com a temperatura do forno, pois qualquer descuido pode alterar a cor". Técnicas que ele conhecia como ninguém.
E depois de tudo queimado e empacotado, cuidadosamente, fico a pensar nele, lá no Hotel Glória, acompanhando a colocação dos painéis. Um trabalho minucioso, que só um mestre poderia fazer. E lendo o cartão-postal que escreveu para minha mãe na época descubro que nem mesmo as regalias o faziam esquecer da família:
"Sinto muitas e muitas saudades e lamento que não esteja presente com nossos queridos filhos. Assim, nada disto tem o sabor que teria se toda a querida família estivesse junta".
Esse era o mestre João Martins, de família humilde, que precisou desde cedo mostrar o seu talento. E conseguiu. A prova disso está no jornal "O Ponney", de Coimbra, Ano XI, nº 238, do dia 28 de outubro de 1944. A reportagem mostra meu pai, aos 15 anos, participando de uma exposição, onde apresentava seus bonecos de seda feitos à mão - um casal de japoneses, a "Varina de Aveiro" e o "Sebastião" (infelizmente não sei onde eles estão, imagino que vagando pelas ruas da bela cidade lusitana). Mas pelo jeito, mestre João Martins já era uma promessa.
Por isso, insisto em dizer que a arte é uma das maneiras de se contar a história de um país. Então, convido a todos para entrar na campanha "DIGA NÃO À DESTRUIÇÃO DE OBRAS DE ARTE". E isso inclui, claro, a natureza, a maior obra-prima. Afinal, mestre João Martins tirou dela, muitas vezes, sua inspiração. E muitos também poderão fazer o mesmo, se a preservarmos.
Para entrar na campanha basta me seguir no twitter (@RachelMartins) e deixar um recado. Se quiser escreva pela hashtag #AzulejosHotelGlória
Quem preferir pode escrever para o email: hgloriax@gmail.com. Ou me adicionar no Facebook (Rachel Martins)
Não vamos mais deixar ninguém destruir nosso patrimônio histórico-cultural, em nome do progresso. Afinal, o que impede o moderno de conviver com o antigo? Nada. É só uma questão de sensibilidade e bom gosto.
Prazer em conhecer Mestre João Martins.
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