(artigo publicado em A GAZETA, na parte de Opinião, dia 26 de março de 2011)
O artista português João Martins, feito e perfeito em Coimbra, que viveu muitos anos entre os capixabas com a família, não chegou a ver nem saber da destruição de parte da sua obra que compunha as paredes do principal restaurante do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, Brasil. Morreu vítima de uma barbeirada médico-hospitalar e de um aneurisma. João expressava-se unicamente pelo talento.
Quando tentava falar era um desatino. Gaguejava que só. Não foi feito para falar com palavras. Por circunstâncias pessoais convivi com ele, que se apelidava, paradoxalmente, de João Ninguém. Veja como os significados são sutis, desse João Tudo. Pinturas, gravuras, esculturas e cultura geral. E à modalidade de paciência dos agraciados pela genialidade, irritava-se à toa. Mas gostava de piada de português: ouvia e contava. Muitas vezes, depois de passar meses trabalhando em uma pintura, por exemplo, jogava fora. Já confessei, anteriormente, que a maioria da minha pinacoteca foi conquistada via lata de lixo do João.
Não teve nada, mas foi muito. É esta , meus caros, a sublime diferença entre ser e ter que fazer. A arte lhe brotava pelas mãos já trêmulas e cheias de capricho, os olhos faiscando atentos às filigranas de sua forma de imprimir seu eu. Agora restam as suas representações, dependuradas mundo afora. Comigo, ficam os gestos, as críticas elaboradas com saber sobre a ordem, o mundo, a ética.
Os cinco filhos, residentes em Vitória, São Paulo, Paris e Lisboa, que foram criados com arte, por arte do pai, estão muito tristes, pois haviam entrado em contato com a empresa responsável pela reforma do Hotel Glória dispondo-se a retirar os painéis de azulejos, pintados à mão em 1960, antes da grosseria de feri-los mortalmente com britadeiras mentais e propriamente ditas.
O irresponsável pelo descaso ficou muito mais famoso pelas estrepolias público-conjugais com atrizes do que por fazer qualquer coisa para aumentar a fortuna que o pai lhe deu, transformando-se, hoje, na pessoa mais rica do Brasil, onde a diferença entre pobres e ricos é uma das maiores do mundo. Triste, muito triste.
A arte, como sabemos, é a derradeira das metáforas, não pode ser explicada, apenas sentida. Assim como o amor não precisa de ninguém ou nada para existir e autodeterminar-se. Tal violenta ignorância está protegida pela representação social da ignorância do país, monitorada unicamente pelo dinheiro. Não há ideologia, não há nada parecido. Agora, como dantes, a censura existe e é mais eficiente e sutil. O capital assumiu a forma humana como um clone previsível em sua determinação: eliminar a inteligentzia. Esta seria mortal para os rudes e poderosos caboclos. Então é possível que o movimento espontâneo que paira internacionalmente não dê em nada, como se diz.
Pincéis, tintas, telas, cinzéis, azulejos, painéis e semelhantes, comovam-se.
Neste tempo é inútil esperar algo de humano, dos humanos.
O autor é psiquiatra e professor de Psicologia Médica
O artista português João Martins, feito e perfeito em Coimbra, que viveu muitos anos entre os capixabas com a família, não chegou a ver nem saber da destruição de parte da sua obra que compunha as paredes do principal restaurante do Hotel Glória, no Rio de Janeiro, Brasil. Morreu vítima de uma barbeirada médico-hospitalar e de um aneurisma. João expressava-se unicamente pelo talento.
Quando tentava falar era um desatino. Gaguejava que só. Não foi feito para falar com palavras. Por circunstâncias pessoais convivi com ele, que se apelidava, paradoxalmente, de João Ninguém. Veja como os significados são sutis, desse João Tudo. Pinturas, gravuras, esculturas e cultura geral. E à modalidade de paciência dos agraciados pela genialidade, irritava-se à toa. Mas gostava de piada de português: ouvia e contava. Muitas vezes, depois de passar meses trabalhando em uma pintura, por exemplo, jogava fora. Já confessei, anteriormente, que a maioria da minha pinacoteca foi conquistada via lata de lixo do João.
Não teve nada, mas foi muito. É esta , meus caros, a sublime diferença entre ser e ter que fazer. A arte lhe brotava pelas mãos já trêmulas e cheias de capricho, os olhos faiscando atentos às filigranas de sua forma de imprimir seu eu. Agora restam as suas representações, dependuradas mundo afora. Comigo, ficam os gestos, as críticas elaboradas com saber sobre a ordem, o mundo, a ética.
Paulo Bonates com mestre João no Natal de 2006 - mestre João está lendo o livro sobre Fernando Pessoa que ganhou de PB
Os cinco filhos, residentes em Vitória, São Paulo, Paris e Lisboa, que foram criados com arte, por arte do pai, estão muito tristes, pois haviam entrado em contato com a empresa responsável pela reforma do Hotel Glória dispondo-se a retirar os painéis de azulejos, pintados à mão em 1960, antes da grosseria de feri-los mortalmente com britadeiras mentais e propriamente ditas.
O irresponsável pelo descaso ficou muito mais famoso pelas estrepolias público-conjugais com atrizes do que por fazer qualquer coisa para aumentar a fortuna que o pai lhe deu, transformando-se, hoje, na pessoa mais rica do Brasil, onde a diferença entre pobres e ricos é uma das maiores do mundo. Triste, muito triste.
A arte, como sabemos, é a derradeira das metáforas, não pode ser explicada, apenas sentida. Assim como o amor não precisa de ninguém ou nada para existir e autodeterminar-se. Tal violenta ignorância está protegida pela representação social da ignorância do país, monitorada unicamente pelo dinheiro. Não há ideologia, não há nada parecido. Agora, como dantes, a censura existe e é mais eficiente e sutil. O capital assumiu a forma humana como um clone previsível em sua determinação: eliminar a inteligentzia. Esta seria mortal para os rudes e poderosos caboclos. Então é possível que o movimento espontâneo que paira internacionalmente não dê em nada, como se diz.
Pincéis, tintas, telas, cinzéis, azulejos, painéis e semelhantes, comovam-se.
Neste tempo é inútil esperar algo de humano, dos humanos.
O autor é psiquiatra e professor de Psicologia Médica
Nenhum comentário:
Postar um comentário