Paramos a história de João Ninguém (Alguém) Martins lá nos 15 anos, participando de uma exposição, onde apresentava seus bonecos de seda feitos à mão - um casal de japoneses, a "Varina de Aveiro" e o "Sebastião", em Coimbra, Portugal.
O verso da foto acima. Mestre João Martins, que não podia ver uma folha de papel em branco que desenhava, por ele mesmo
Como já disse antes, meu pai era uma pessoa de poucas palavras e muita arte. Portanto, pouco sei sobre sua adolescência. Mas é engraçado, lembro-me dele contando-me uma cena de quando era criança (em tempos de guerra).
Mestre João Martins era gago (espero que não fique bravo comigo, lá em cima, por estar contando tal intimidade de sua vida). Aliás, qualquer semelhança com o filme "O Discurso do Rei", indicado ao Oscar, é mera coincidência.
Até porque, Albert Frederick Arthur George (interpretado primorosamente por Colin Firth), que acabou herdando o trono do Reino Unido, se tornando o rei George VI, contou com o grande amigo - e fonoaudiólogo - Lionel Logue (em outra atuação magnífica de Geoffrey Rush) para vencer o fantasma da gagueira e seguir o seu destino.
Meu pai não - tinha fases boas e ruins, tudo dependia do momento E assim como George VI, e outros gagos, também fugia do "microfone". Preferia, claro, ficar no seu canto fazendo aquilo que amava: arte. E era através dela que se expressava.
Bem, o rei, nesse caso, não teve a mesma sorte, precisava vencer esse fantasma e discursar para milhares de pessoas. E não deve ter sido fácil. Mas quando temos bons profissionais e, melhor ainda, amigos... Tudo acaba bem.
Lembro-me de minha mãe, brava, quando alguém terminava a frase para meu pai. Por isso, talvez, a tal cena que Mestre João Martins contou-me ficou para sempre na memória.
"Minha filha, lá nos tempos da guerra minha mãe pedia para que eu fosse buscar petróleo (Mestre João Martins tinha um sério problema com palavras começadas com 'P' e 'F', principalmente). No caminho, eu ia dizendo: 'petróleo, petróleo, petróleo...'. Mas quando chegava lá, não conseguia dizer e voltava para casa com a garrafa vazia. Minha mãe ficava muito brava. Até que um dia o monsenhor descobriu que era 'petróleo' o que eu queria. A partir daí, bastava eu lhe entregar o recipiente e pronto. Foi a glória!"
E assim como esse problema não é o mote do filme, na vida de meu pai também era apenas mais um fantasma - e cada um tem os seus. Ele respirava arte. Por isso, já a partir dos 17 anos fez várias exposições em Portugal (até vir para o Brasil, em 1954) - e em todas, pelo jeito, já percebia-se que era um grande artista. Pelo menos, é o que mostram os jornais da época.
E basta ler o discurso de abertura de uma de suas exposições na Sala de Exposições "O Primeiro de Janeiro", feito pelo Exmo. Professor da Faculdade de Letras, da Universidade de Coimbra, Doutor Paulo Quintela, para entender quem já era Mestre João Martins.
Alguns destaques do discurso:
(...) nada tenho que especificamente me qualifique para o papel que aqui estou a desempenhar: nada sei de pintura, sinto-a, apenas, e isso continua a bastar-me para meu governo.
Aprende Eike Batista!
(...) Estamos na presença dos trabalhos de um jovem de 19 anos, de condição humilde, sem convívio estimulante, sem exemplos grandes que o guiem, sem mestres que o orientem, sem museus ricos de pintura, onde possa contemplar qualquer coisa que o solicite. Nunca foi a Lisboa, sequer, e o único museu que conhece, além do de Coimbra, é o de Viseu... E vá lá! Que podia acolher-se à sombra de pior árvore... Que o espírito do Grão Vasco o proteja e guie!
Aprende Eike Batista!
(...) "Cultura! Cultura! Amor aos valores, criação de valores!", apregoam por aí alguns charlatães perniciosos, parasitas da íntima riqueza humana. Pois bem, senhores! Eis aí um exemplo de praticamente por à prova esse fácil serviço de palavras.
Aprende Eike Batista!
(...) Quero simplesmente recordar-lhe um passo de alguém que foi um grande pintor e um grandissíssimo poeta - William Black - que diz: "Deixai que um homem que um dia fez um desenho, continue a trabalhar esse desenho, e ele produzirá uma pintura ou um quadro. Mas se ele tiver a coragem de o deixar antes de o estragar, então fará ainda coisa melhor.
Aprende Eike Batista!
(...) Que daqui a alguns anos, quando se falar do pintor João Martins, nós possamos todos dizer, com orgulho: "João Martins? Aquele rapazinho de Coimbra? Bem me lembro: Estive na sua primeira exposição!"
Aprende Eike Batista!
Esse discurso prova que para apagar a trajetória de um artista basta destruir a sua arte (como foi feito com os seis painéis de azulejos pintados à mão no Hotel Glória, em 1960, por Mestre João Martins). E é isso que cada vez mais fazemos no Brasil - pois o país está cheio de ufanistas que querem transformá-lo num moderno shopping center, deixando nossa História apenas dentro de um computador.
Ou do contrário, o Brasil nunca será um país de Primeiro Mundo, pois esses fazem questão de preservar seu patrimônio histórico-cultural.
Preservar o passado não impede, em nada, um país de dar grandes passos ao futuro. Ao contrário, só o torna melhor, ainda, na "fita".
Mestre João Martins era gago (espero que não fique bravo comigo, lá em cima, por estar contando tal intimidade de sua vida). Aliás, qualquer semelhança com o filme "O Discurso do Rei", indicado ao Oscar, é mera coincidência.
Até porque, Albert Frederick Arthur George (interpretado primorosamente por Colin Firth), que acabou herdando o trono do Reino Unido, se tornando o rei George VI, contou com o grande amigo - e fonoaudiólogo - Lionel Logue (em outra atuação magnífica de Geoffrey Rush) para vencer o fantasma da gagueira e seguir o seu destino.
Meu pai não - tinha fases boas e ruins, tudo dependia do momento E assim como George VI, e outros gagos, também fugia do "microfone". Preferia, claro, ficar no seu canto fazendo aquilo que amava: arte. E era através dela que se expressava.
Bem, o rei, nesse caso, não teve a mesma sorte, precisava vencer esse fantasma e discursar para milhares de pessoas. E não deve ter sido fácil. Mas quando temos bons profissionais e, melhor ainda, amigos... Tudo acaba bem.
Lembro-me de minha mãe, brava, quando alguém terminava a frase para meu pai. Por isso, talvez, a tal cena que Mestre João Martins contou-me ficou para sempre na memória.
"Minha filha, lá nos tempos da guerra minha mãe pedia para que eu fosse buscar petróleo (Mestre João Martins tinha um sério problema com palavras começadas com 'P' e 'F', principalmente). No caminho, eu ia dizendo: 'petróleo, petróleo, petróleo...'. Mas quando chegava lá, não conseguia dizer e voltava para casa com a garrafa vazia. Minha mãe ficava muito brava. Até que um dia o monsenhor descobriu que era 'petróleo' o que eu queria. A partir daí, bastava eu lhe entregar o recipiente e pronto. Foi a glória!"
E assim como esse problema não é o mote do filme, na vida de meu pai também era apenas mais um fantasma - e cada um tem os seus. Ele respirava arte. Por isso, já a partir dos 17 anos fez várias exposições em Portugal (até vir para o Brasil, em 1954) - e em todas, pelo jeito, já percebia-se que era um grande artista. Pelo menos, é o que mostram os jornais da época.
Reportagem do jornal "O Primeiro de Janeiro", Coimbra, de 01/03/1948
Reportagem do jornal "O Ponney", de Coimbra, em 06/03/1948
Mestre João Martins e Doutor Paulo Quintela na abertura da exposição
Mestre João Martins e os convidados na abertura da exposição
Reportagem do jornal "O Ponney", de Coimbra, em 06/03/1948
Mestre João Martins e Doutor Paulo Quintela na abertura da exposição
Mestre João Martins e os convidados na abertura da exposição
E basta ler o discurso de abertura de uma de suas exposições na Sala de Exposições "O Primeiro de Janeiro", feito pelo Exmo. Professor da Faculdade de Letras, da Universidade de Coimbra, Doutor Paulo Quintela, para entender quem já era Mestre João Martins.
(...) nada tenho que especificamente me qualifique para o papel que aqui estou a desempenhar: nada sei de pintura, sinto-a, apenas, e isso continua a bastar-me para meu governo.
Aprende Eike Batista!
(...) Estamos na presença dos trabalhos de um jovem de 19 anos, de condição humilde, sem convívio estimulante, sem exemplos grandes que o guiem, sem mestres que o orientem, sem museus ricos de pintura, onde possa contemplar qualquer coisa que o solicite. Nunca foi a Lisboa, sequer, e o único museu que conhece, além do de Coimbra, é o de Viseu... E vá lá! Que podia acolher-se à sombra de pior árvore... Que o espírito do Grão Vasco o proteja e guie!
Aprende Eike Batista!
(...) "Cultura! Cultura! Amor aos valores, criação de valores!", apregoam por aí alguns charlatães perniciosos, parasitas da íntima riqueza humana. Pois bem, senhores! Eis aí um exemplo de praticamente por à prova esse fácil serviço de palavras.
Aprende Eike Batista!
(...) Quero simplesmente recordar-lhe um passo de alguém que foi um grande pintor e um grandissíssimo poeta - William Black - que diz: "Deixai que um homem que um dia fez um desenho, continue a trabalhar esse desenho, e ele produzirá uma pintura ou um quadro. Mas se ele tiver a coragem de o deixar antes de o estragar, então fará ainda coisa melhor.
Aprende Eike Batista!
(...) Que daqui a alguns anos, quando se falar do pintor João Martins, nós possamos todos dizer, com orgulho: "João Martins? Aquele rapazinho de Coimbra? Bem me lembro: Estive na sua primeira exposição!"
Aprende Eike Batista!
2ª parte do discurso do Doutor Paulo Quintela na exposição de Mestre João Martins
3ª parte do discurso do Doutor Paulo Quintela na exposição de Mestre João Martins
3ª parte do discurso do Doutor Paulo Quintela na exposição de Mestre João Martins
Esse discurso prova que para apagar a trajetória de um artista basta destruir a sua arte (como foi feito com os seis painéis de azulejos pintados à mão no Hotel Glória, em 1960, por Mestre João Martins). E é isso que cada vez mais fazemos no Brasil - pois o país está cheio de ufanistas que querem transformá-lo num moderno shopping center, deixando nossa História apenas dentro de um computador.
Mas se você não faz parte dessa turma, já passou da hora de entrar na campanha
Ou do contrário, o Brasil nunca será um país de Primeiro Mundo, pois esses fazem questão de preservar seu patrimônio histórico-cultural.
Preservar o passado não impede, em nada, um país de dar grandes passos ao futuro. Ao contrário, só o torna melhor, ainda, na "fita".
Rachel,
ResponderExcluirConte conosco. Republicada no Blogue do Frederico Luiz em http://frederico2010.blogspot.com/2011/02/joao-ninguem-alguem-martins-parte-2.html